Quando um brasileiro de média cultura e suficiente escolaridade pensa em "Macunaíma", recupera uma imagem dos bancos escolares, e esta, via de regra, vem deformada pela maior ou menor competência e entusiasmo do professor de literatura; à parte disso, há o vestibular à frente, e é melhor ler na internet algum resumo de “Macunaíma” para não fazer feio e, também, algumas interpretações simplórias e redutoras, escritas por pessoas bem intencionadas que se repetem umas às outras.
Por outro lado, os manuais dispõem que esse é um romance que pertence ao cânone, quer dizer: é um livro respeitável – e temível. Tudo, portanto, conspira para que Macunaíma seja incorporado ao rol dos textos mais citados do que lidos, assim como o Ulisses de James Joyce.
É curioso, isso não acontece com Memórias póstumas de Brás Cubas, que o pessoal demonstra ter lido, ainda que por imposição da escola, e alguns estudantes até gostam. Já para Macunaíma o resumo dá para o gasto, e observe-se: Memória póstumas está bem mais longe de nós do que Macunaíma. Talvez seja o momento de pensarmos nas razões.
Por que Macunaíma envelheceu, e só se sustém porque o vestibular o exige? Claro que qualquer resposta será insatisfatória, mas uma coisa é certa: a obra de Mario de Andrade, rapsódica e fantasista, não é de molde a seduzir nosso jovem leitor, que se embaralha com um léxico que precisa de dicionário e se confunde nas épocas e lugares; já o adulto bastante lido não consegue acreditar nesse romance escrito ad hoc para dar calor propósitos do Modernismo nacionalista; digamos, ele tem o mesmo valor dos sucessivos panfletos da época, e por isso goteja teoria, cheira a tese.
Todorov, no seu “A Literatura em Perigo”, ao fazer um diagnóstico da produção literária francesa contemporânea, classifica as obras em três modalidades de intenção, e por falta de espaço não é possível tratar disso aqui; mas um dos tipos engloba aquelas obras que se destinam a ser lidas na Universidade, e ali dissecadas pelos acadêmicos.
Macunaíma pertence a essa categoria, ainda que a finalidade fosse outra, a de validar na prática os novos tempos culturais. Com isso, tal como nos anátemas de Todorov, é uma obra em que o prazer da leitura passa ao largo, subsistindo o conhecimento que nos dá de uma época em que o nacionalismo – essa Hidra que de vez em quando assombra a Humanidade – era uma redescoberta, o mesmo nacionalismo que quatro anos depois levou ao manifesto integralista de Plínio Salgado e logo aos movimentos de extrema direita que conduziram às conhecidas catástrofes sociais, bélicas, fascistas e nazistas.
“Macunaíma” não é um romance, é uma bandeira. Como bandeira, o personagem-título acaba por ser uma caricatura do que Mario pretendia, uma espécie de representação enciclopédica do povo brasileiro, uma ideia perfeitamente utópica, ainda que essa representação opte por escolher o óbvio caminho da multiplicidade linguística, racial e paisagística, quando a questão é muito, muito mais complexa.
Mario de Andrade era um refinado homem de letras, com grande influência na nossa música, um verdadeiro agitador cultural, um autêntico civilizador, mas esses títulos não o credenciam a escrever com êxito um romance. Para isso é preciso literatura.
Penso até que, há alguns momentos engraçados, bem escritos, mas a sucessão frenética dos episódios, por seu acúmulo barroco, leva ao tédio e à vontade de saltar páginas e repetir como o protagonista da obra, “ai, que preguiça..’’.”. “D. Quixote” é também uma narrativa rapsódica, mas a grande diferença está em que Cervantes quis apenas fazer rir sua geração, e usou deliberadamente a caricatura para isso; o que acontece com Mario de Andrade é que constrói uma caricatura não querendo fazê-lo, e esse erro é um dos piores que podem acontecer a um escritor.
Em seu tempo talvez tivesse algum sentido, mas hoje tudo nele ressoa desconfiável; em suma: Macunaíma não mais dialoga com nossa cultura, e mesmo com a boa vontade devida a seu autor, é tempo de pensarmos se de fato essa narrativa ainda merece as atenções das escolas, que podem ser arejadas com outras obras, quiçá mais atuais, de modo a despertar no jovem o gosto da leitura e não afastá-la dela.
Talvez Macunaíma possa ainda constar nas bibliografias acadêmicas, mas aí como objeto de estudos de natureza antropológica, histórica ou sociológica. Pode render boas teses nesses âmbitos, e certamente Mario de Andrade gostaria de saber que seu livro, enfim, teria encontrado seus melhores destinatários.
Se você não acredita em nada do que acima falei, proponho um teste: nesta quadra festiva, em que há um oportuno e saudável movimento para que as pessoas se deem livros, dê o Macunaíma a um adolescente.
Fonte(s): Correio do Povo
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